AS FEIRAS MEDIEVAIS E OS PROBLEMAS DA RECRIAÇÃO HISTÓRICA EM PORTUGAL: UMA PERSPECTIVA CRÍTICA (VERSÃO REVISTA)
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Como as feiras medievais voltaram em força este ano, revisitamos este texto para reflectir sobre alguns problemas da prática da recriação histórica em Portugal e o modo como está maioritariamente “capturada” por certos interesses e vieses que deturpam a intenção original desta actividade: recriar eventos específicos ou simplesmente a vida diária na Idade Média com o máximo de rigor científico.
Em primeiro lugar, é necessário chamar a atenção para o problema mais premente da esmagadora maioria da recriação no nosso país que, ao invés de seguir um espírito mais próximo do explicado no parágrafo anterior, se resume a um negócio que vive da “fantasia” que oferece aos visitantes. Queremos deixar claro que compreendemos a situação económica e social específica em que a actividade de recriação portuguesa se insere. Numa sociedade com graves lacunas educacionais sobre História, com falta de investimento em investigação e avanço nos estudos de novos temas, e onde a escassa ligação entre universidades e sociedade não permite que as ideias pré-concebidas sobre o período se desvaneçam, é natural que estes problemas de base passem facilmente para a recriação. Se juntarmos a esta questão educacional a crónica falta de prosperidade económica em Portugal (ambas associadas), então ficamos inevitavelmente com o caldo entornado. É neste paradigma que surgem as “feiras” medievais quase como cogumelos, sem dúvida numa tentativa dos poderes locais em atrair visitantes e gerar dinamismo económico nas aldeias, vilas e cidades do interior abandonado e esquecido que deveriam ter outra atenção por parte da sociedade, até porque é no interior de Portugal onde se encontra maior quantidade e qualidade de património medieval, seja ele de monumentos ou de artefactos.
Comecemos por alguns exemplos concretos das chamadas “feiras” medievais: as bancas de venda. Quantos daqueles produtos estariam realmente num mercado medieval? E, mesmo que estivessem disponíveis, seriam estes representativos do período? Basta referir como se encontram produtos como “ouro inca” e outros completamente anacrónicos ou com materiais modernos, a que se junta a publicidade de grandes empresas e umas barraquinhas à porta de alguns destes eventos. Mesmo às vezes a própria recriação pode ser uma forma de anunciar produtos da terra de uma forma que pode ser interpretada como sendo pouco honesta: partilhando um caso anedótico, mas bem real, a Viagem Medieval em Santa Maria da Feira chegou a usar um espectáculo sobre os conflitos entre D. Dinis e o irmão Afonso em 1287 para divulgar a fogaça de uma maneira completamente exagerada, ainda para mais quando nos lembramos que é uma criação supostamente da segunda metade do século XVI… Ou seja, mesmo as organizações embarcam na onda da comercialização, o que é particularmente visível no caso da Viagem Medieval e do Mercado Medieval de Óbidos, pois hoje em dia é cada vez mais notório que ambos não passam de tentativas de imitar o Puy du Fou, um parque de diversões francês, à escala portuguesa e de modo sazonal. Outra prova da deriva financeira das feiras medievais é a maneira como tentam cobrar o máximo que podem aos visitantes, desde as entradas com pulseiras até à visualização de certos espectáculos/espaços (mesmo que geridos por voluntários…), sem qualquer atenção às realidades dos orçamentos familiares. Bem se pode alegar que os actores precisam de ser pagos, etc., mas o facto é que as feiras medievais tendem a fazer bons lucros – umas mais, outras menos – e alguns eventos empregam mão-de-obra barata ao usarem associações da terra ou voluntários. Sem pretensões de sermos “sindicato de recriadores” – nem desprimor nenhum pelo movimento sindicalista -, questionamos a necessidade de preços tão altos ou a ausência de pacotes familiares mais comportáveis para os mais pobres, por exemplo, e achamos que este caminho tem de ser repensado.
Outra faceta da comercialização é constituída pelos recriadores em si. Enquanto em boa parte da Europa Central e do Norte estes abordam a actividade como um passatempo, frequentemente com custos financeiros relativamente elevados, na Península Ibérica a recriação tem dois fenómenos paralelos: os voluntários pagos a preços demasiado baixos e recriadores “profissionais” para quem a recriação é um emprego. Se atentarmos às origens deste último grupo, dá a forte impressão de que temos principalmente grupos de teatro a explorar um nicho “histórico” de modo a fugir ao desemprego crónico na área cultural, a que se juntam mais alguns grupos de curiosos também (semi-)“profissionalizados”. A consequência natural do sistema é termos recriadores que aparecem para todos os períodos históricos, da Proto-História ao século XIX, com uma pesquisa superficial cheias de incorreções históricas e maus adereços, explicadas pela alegada falta de dinheiro- mesmo quando ganham milhares de euros todos os anos com o negócio. No caso das companhias de teatro, acresce a conversão da recriação num teatro dramático, com todos os truques e vícios da profissão. Se o uso da comédia – de preferência, baseado nas fontes medievais - ou até de algum burlesco ocasionalmente possa não ser negativo e a recriação de eventos envolva sempre algum nível de dramatização, o que estas companhias fazem é essencialmente matar a naturalidade da recriação. Claro que conhecemos recriadores sérios que não andam nestas vidas pelo dinheiro, mas não deixemos estas árvores esconder a floresta sociológica da colectividade.
Ainda um outro problema é o do envolvimento cada vez mais asfixiante do poder político à medida que estes eventos foram ganhando popularidade, o que levou à criação de eventos ou apoios institucionais a feiras já existentes. É precisamente o suporte político que explica, em conjunto com a moda de tudo que tenha que ver com a Idade Média, o sobrecrescimento da recriação histórica medievalista no país, a ponto de se tornar comum dizer que há hoje mais feiras (anuais) do que havia na própria Idade Média...
Contudo, como os economistas dizem, não há almoços grátis: os autarcas, com algumas excepções dignas de registo, não estão particularmente interessados em História. Usam a recriação não só como instrumento turístico de desenvolvimento do território, uma intenção louvável e muito positiva, e um modo de encher os cofres das autarquias com os rendimentos daí resultantes, mas também para moldar identidades locais e nacionalistas, que podem não ser completamente estanques no modo como interagem entre si. O bairrismo é muito visível em todos os eventos, embora seja mais tóxico em alguns como a Feira Afonsina em Guimarães, onde Afonso Henriques é usado de forma errónea para promover identidades locais, nomeadamente a velha máxima (altamente problemática) do “Aqui Nasceu Portugal”, de uma forma que se intersecta com algum nacionalismo. Exemplos paradigmáticos incluem o nascimento de Afonso Henriques – que provavelmente nem ocorreu em actual território português - ou a recriação de um baptismo para o qual não temos fontes na Igreja de São Miguel do Castelo, da segunda metade do século XIII…
Mas voltando ao nacionalismo, apesar de um pouco mais encoberto, é facilmente observável quando se analisa como boa parte destes eventos, mesmo quando supostamente recriam a concessão do foral da terra ou algo mais local, enxertam quase sempre um plano de História Nacional com rastos de um certo bafio salazarento. O fenómeno é facilmente observável no discurso à volta da identidade portuguesa, onde existe a glorificação de uma certa grandeza nacional, ou com o modo como o “outro”, quer se trate dos castelhanos ou dos muçulmanos, costuma ser tratado de forma hostil (com vários dos eventos a suscitarem a audiência directa ou indirectamente contra eles), embora no segundo caso alguns eventos acabem por dar ênfase em contracorrente à questão da coexistência entre comunidades e do legado islâmico na formação de Portugal. Mesmo assim, no caso islâmico, fazem sempre o mesmo erro na esmagadora maioria das recriações: imaginam os árabes e berberes no al-Andalus como nómadas vivendo em tendas e outros clichés. Também, conhecendo um pouco quem anda por estas feiras a fazer recriação e com a devida ressalva de que não se aplica de maneira nenhuma a toda a gente ou talvez à maioria, fica-se com a impressão de que muitos têm certos ideais de extrema-direita ou são vulneráveis a ela. Embora seja necessário um estudo sociológico e antropológico mais apurado para esta questão, parece óbvio que estes eventos são frequentemente ambientes ideais para a proliferação de ideologias extremistas em Portugal.
Por fim, mencionamos um ponto bastante importante. Para além de erros factuais, especialmente quando as organizações e recriadores não têm profissionalismo/experiência ou estão literalmente a ignorar os factos, temos ainda outro problema perene: a recriação histórica em Portugal não sabe reconstruir espaços e quotidianos em devidas condições, quando recriá-los poderia ser a componente mais importante de educação ao público ou até uma fonte importante de arqueologia experimental. As vivências quotidianas (altamente dependentes do contexto quotidiano e regional) são constantemente postas em segundo plano de grandes acontecimentos/personagens, nomeadamente os reis de Portugal, que ficam quase sozinhos a fazer alta política sem as centenas ou milhares de pessoas que gravitavam à sua volta na corte. E claro, indo ao verdadeiro quotidiano, os grupos de actores tendem a pegar em certas personagens como prostitutas, “bruxas” - o que quer que isso seja -, leprosos e outros quejandos anacronicamente, com mais interesse na comédia do que em representar as realidades complexas de tais grupos sociais. Também podemos destacar o vestuário historicamente incorrecto ou com materiais inapropriados, embora esta falha possa vir parcialmente de um certo atraso da historiografia portuguesa quanto ao vestuário medieval. A incorrecta representação de espaços, ex.: castelos, apresentados como habitações nobres quando a sua principal função era militar (um erro muito comum nas feiras medievais), das representações preconceituosas e descontextualizadas das mentalidades medievais (especialmente da religiosidade!), da música frequentemente anacrónica ou do modo como muitos assuntos são praticamente ignorados, indo das comunidades judaicas às questões ligadas com a exploração da terra e o senhorialismo: um bom exemplo seria a recriação da cobrança de obrigações pecuniárias senhoriais, para os quais temos frequentemente alguma informação para os séculos finais da Idade Média. Mesmo na área da guerra, aqui também inserida porque fazia frequentemente parte do quotidiano e que costuma estar representada em demasia, há uma série de erros sistemáticos. Alguns exemplos muito simples, para sumariar: na composição das hostes – em vários destes eventos, com destaque para Pombal e Tomar, vemos tantos ou mais membros de Ordens Militares do que haveria na própria época em todo o reino – e na proporção em que certas armas ou armaduras são usadas: espadas por todo o lado, os guerreiros têm sempre cotas de malha, etc. Isto para não referir asneiras tão simples como introduzir chapas num contexto de século X. Certamente está a faltar uma leitura aprofundada de obras como “A Sociedade Medieval Portuguesa” do Prof. Oliveira Marques e muitas outras mais recentes.
Com esta publicação não queremos fazer um ataque gratuito às feiras medievais nem demolir grupos de recriação histórica, mas sim tentar alertar o público sobre a situação, pois só o povo tem poder de mudança. Se chegarmos à consciência dos participantes no meio, tanto melhor. A recriação histórica em Portugal tem um longo caminho para trilhar, incluindo com muitas das boas práticas dos países do Norte e Centro da Europa (não que sejam perfeitos), se quiser mesmo disponibilizar experiências educacionais e lúdicas ao público de forma informal, ao mesmo tempo que estimula o seu interesse na Idade Média, manipulando e (re)construindo as construções populares do passado. De outro modo, o que distingue as feiras medievais das festas populares? O facto de apresentarem uma aparência “medievalizada”? Se for para isso, não conseguimos ver grande utilidade ou futuro a longo prazo, quando à moda do “medieval” chegar a sua hora…
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